mergulhem-se

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Rinoceronte... - Hilda Hilst

Rinoceronte elefante
Vivi nos altos de um monte
Tentando trazer teu gesto
Teu Horizonte
Para o meu deserto

sábado, 21 de agosto de 2010

Contagem regressiva - Ana Cristina César

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três a quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos


domingo, 15 de agosto de 2010

trecho em "Notas de um candidato a suicídio" - Charles Bukowski

claro que não tem explicação para quem tem bom gosto e quem não tem. o que pra um homem é buceta, pra outro é masturbação. não consigo atinar com o motivo da popularidade de Faulkner, dos jogos de beisebol, Bob Hope, Henry Miller, Shakespeare, Ibsen, as peças de Tchekov. G. B. Shaw me faz bocejar do princípio ao fim. Tolstói, idem, Guerra e Paz, pra mim, é o maior fracasso desde O capote, de Gogol. de Mailer, já falei. Bob Dylan me dá impressão de canastronice, ao passo que Donovan parece ter classe mesmo. simplesmente não dá pra entender. boxe, futebol profissional, basquete, são coisas que têm dinamismo. O Hemingway do início era bom. Dos foi um garoto danado. Sherwood Anderson, de cabo a rabo. o Saroyan do início. tênis e ópera, podem ficar pra vocês. carros novos, quero que vão pro inferno. calcinha de nylon, argh. anéis, relógios, argh. Gorky bem no início. D. H. Lawrence é legal. Celine, sem dúvida alguma. ovos mexidos, porra. Artaud, quando fica inflamado. Ginsberg, às vezes. luta-livre - o quê??? Jeffers, lógico. e assim por diante, vocês sabem. quem tem razão? eu, claro. mas evidentemente que tenho.'

(do livro "Fabulário geral do delírio cotidiano. Ereções, ejaculações, exibicionismos - Parte II", Charles Bukowski,ed.J&PM)


O jardim de cimento - Ian McEwan, Romance

Esse é o primeiro romance de McEwan, e de todos os que li até agora, sinto que é o melhor. Parece que aqui sim, McEwan acerta com sua habilidade técnica literária para uma história genial que exige desenvoltura. Não dá para julgá-la, senão como obra isolada, tamanha a diferença com outros livros do mesmo autor - por exemplo "Na Praia" que não é nada demais. A narrativa pragmática, detalhada, (distanciada até), aparentemente fria ou mórbida e sem qualquer psicologismo de McEwan adentra o universo de uma família completamente absurdo e a transforma em algo impressionantemente natural (além de curioso, gostoso de ler também pelo clima de tensão sempre muito bem pensado).

Quatro irmãos (Julie, 17, Jack, 15, Sue, 12, Tom, 6), perdem os pais repentinamente logo no começo do livro, ao manterem isso em segredo passam a viver sozinhos na casa isolada da família. O enredo se constrói a partir de então quando eles tém a possibilidade de experimentar uma sensação extrema de liberdade e perda que se misturam do começo ao fim. Antes que ninguém externo descubra o fato ocorrido, passam-se meses em que as personagens vivem à margem da moral social, se descobrindo, estreitando o laço entre si (que passa da fraternidade, maternidade, até o erotismo), transformando também as relações consigo mesmo (numa auto-descoberta e amadurecimento contínuo) e até na relação com a casa onde vivem. São rumos inusitados para situações inusitadas que de acordo com a naturalidade que são desenvolvidas nos faz acreditar que era assim mesmo que as coisas deveriam ser feitas.

É impressionante a habilidade "cirúrgica" de McEwan costurando com domínio e precisão todo desencadeamento dos fatos. Além da originalidade com que são contados.





O jardim de cimento
Ian McEwan
Ed. Companhia de Bolso
129 páginas

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Espelho - Sylvia Plath

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.

sábado, 7 de agosto de 2010

Poemacto I - Herberto Helder, Poesia...

Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.
Uma vara canta branco.
Uma cidade canta luzes.
Penso agora que é profundo encontrar as mãos.
Encontrar instrumentos dentro da angústia:
clavicórdios e liras ou alaúdes
intencionados.
Cantar rosáceas de pedra no nevoeiro.
Cantar sangrento nevoeiro.
O amor atravessado por um dardo
que estremece o homem até às bases.

Cantar o nosso próprio dardo atirado
ao bicho que atravessa o mundo.
Ao nome que sangra.
Que vai sangrando e deixando um rastro
pela culminante noite fora.
Isso é o nome do amor que é o nome
do canto. Canto na solidão.
O amor obsessivo.
A obsessiva solidão cantante.
Deito-me, e é enorme. É enorme levantar-se,
cegar, cantar.
Ter as mãos como o nevoeiro a arder.

As casas são fabulosas, quando digo:
casas. São fabulosas
as mulheres, se comovido digo:
as mulheres.
As cortinas ao cimo nas janelas
faíscam como relâmpagos. Eu vivo
cantando as mulheres incendiárias
e a imensa solidão
verídica como um copo.
Porque um copo canta na minha boca.
Canta a bebida em mim.
Veridicamente, eu canto no mundo.

Que falem depressa. Estendam-se
no meu pensamento.
Mergulhem a voz na minha
treva como uma garganta.
Porque eu tanto desejaria acordar
dentro da vossa voz na minha boca.
Agora sei que as estrelas são habitadas.
Vossa existência dura e quente
é a massa de uma estrela.
Porque essa estrela canta no sítio
onde vai ser a minha vida.

Queimais as vossas noites em honra
do meu amor. O amor é forte.
Que coisa forte que é a loucura.
Porque a loucura canta minada de portas.
Nós saímos pelas portas, nós
entramos para o interior da loucura.
As cadeiras cantam os que estão sentados.
Cantam os espelhos a mocidade
adjectiva dos que se olham.
Estou inquieto e cego. Canto.
A morte canta-me ao fundo.
É um canto absoluto.

Imagino o meu corpo, uma colina.
Meu corpo escada de estrela.
Nata. Flecha. Objecto cantante.
Corpo com sua morte que canta.
Imagino uma colina com vozes.
Uma escada com canto de estrela.
Imagino essa espessa nata cantante.
Uma que canta flecha.
Imagino a minha voz total da morte.
Porque tudo canta e cantar é enorme.

Imagino a delicadeza. A subtileza.
O toque quase aéreo, quase
aereamente brutal.
Ser tocado pelas vozes como ser ferido
pelos dedos, pelos rudes cravos
da planície.
Ser acordado, acordado.
Porque cantar é um subterrâneo.
Depois é um pátio.
Imagino que as vozes são escadas.
Vozes para atingir o canto.
O canto é o meu corpo purificado.

Porque o meu corpo tem uma sua morte
tocada incendiariamente.
A morte - diz o canto - é o amor enorme.
É enorme estar cego.
Canta o meu grande corpo cego.
Reluzir ao alto pelo silêncio dentro.
O silêncio canta alojado na morte.
Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.



(do livro "Ofício Cantante", poesia completa, Herberto Helder, ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

como se já não bastasse o amor.... poemas


Confissão - Manuel Bandeira


Se não a vejo e o espírito a afigura,
Cresce este meu desejo de hora em hora...
Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,
O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.

Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura...
Abrir-lhe o incerto coração que chora,
Mostrar-lhe o fundo intacto de ternura,
Agora, embevecida e mansa agora...

E é num arroubo em que a alma desfalece
De sonhá-la prendada e casta e clara,
Que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...

Mas ela chega, e toda me parece
Tão acima de mim...tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acobardo.