mergulhem-se

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Como ser um grande escritor - Charles Bukowski, Poema

você tem que trepar com um grande número de mulheres
belas mulheres
e escrever uns poucos e decentes poemas de amor.

e não se preocupe com a idade
e/ou com os talentos frescos e recém-chegados.

apenas beba mais cerveja
mais e mais cerveja

e vá às corridas pelo menos uma vez por
semana

e vença
se possível.

aprender a vencer é difícil -
qualquer frouxo pode ser um bom perdedor.

e não se esqueça do Brahms
e do Bach e também da sua
cerveja.

não exagere no exercício.

durma até o meio-dia.

evite cartões de crédito
ou pagar qualquer conta
no prazo.

lembre-se que nenhum rabo no mundo
vale mais do que 50 pratas.
(em 1977).

e se você tem a capacidade de amar
ame primeiro a si mesmo
mas esteja sempre alerta para a possibilidade de uma
derrota total
mesmo que a razão para essa derrota
pareça certa ou errada -

um gosto precoce de morte não é necessariamente
uma coisa má.

fique longe de igrejas e bares e museus,
e como a aranha seja
paciente -
o tempo é a cruz de todos,
mais o
exílio
a derrota
a traição

todo este esgoto.

fique com a cerveja.

a cerveja é o sangue contínuo.

uma amante contínua.

arranje uma grande máquina de escrever
e assim como os passos que sobem e descem
do lado de fora de sua janela
bata na máquina
bata forte

faça disso um combate de pesos pesados

faça como o touro no momento do primeiro ataque

e lembre dos velhos cães
que brigavam tão bem:
Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.

se você pensa que eles ficaram loucos
em quartos apertados
assim como este em que agora você está

sem mulheres
sem comida
sem esperança

então você não está pronto.

beba mais cerveja.
há tempo.
e se não há
está tudo certo
também.


(retirado de "O Amor é um Cão dos Diabos", traduzido por Pedro Gonzaga)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O mundo ideal e o real - Tostão, Coluna

Este um mundo real, muitas vezes violento, injusto, ganancioso e preconceituoso, e outro ideal, que sonhamos viver, embora façamos pouco para isso. A melhor maneira de fazer algo não é ser bonzinho no Natal nem praticar alguns atos generosos para reparar a culpa real e/ou imaginária. É, principalmente, ser, todos os dias, um bom cidadão. Não é fácil. São muitas as tentações.

Quanto maior a distância entre o mundo real e ideal, maior é o desamparo. É a mesma relação individual entre ego e ego ideal. ``Sou o que penso, mas penso ser tantas coisas`` (Fernando Pessoa).

Escuto, desde criança, que o esporte é o lugar ideal para as pessoas aprenderem e desenvolverem os valores éticos. Isso nunca foi verdade no esporte de competição e de alto nível. O gol, com a ajuda da mão, que classificou a França para a Copa é mais um de dezenas de exemplos. Nesses lances especiais e decisivos, em que não há dúvidas, o quarto árbitro, com a ajuda da TV, deveria anular o gol.

Na emoção de uma partida, os atletas, na busca por glória e dinheiro, pressionados para vencer, demonstram, em atos falhos ou conscientes, toda a desmedida ambição e toda a esperteza humana.

Um dos motivos relatados para o recente suicídio do goleiro Robert Enke, da Seleção Alemã, foi o medo que tinha do fracasso. Isso contribuiu para piorar sua crônica depressão. Perder é morrer.

No mundo ideal, os atletas entrariam em campo somente para jogar futebol, com alegria, e respeitariam companheiros, adversários, árbitros e auxiliares, além de tentar dar bons espetáculos.

No mundo real, os jogos, em todo o planeta, principalmente na América do Sul, estão cada dia mais tensos, tumultuados e violentos. Durante a semana, houve pancadaria em dois jogos no Brasil, um no Uruguai e outro na África.

Muitos treinadores e dirigentes, mesmo sem intenção, estimulam a violência com os discursos de ganhar a batalha, perder a guerra, jogar com muita pegada, além das ofensas aos árbitros.

O que houve com Obina e Maurício e também com Hugo e André Dias (estes não trocaram socos) já aconteceu várias vezes com outros jogadores. Os atletas não suportam a pressão de ter de vencer. Agridem antes de serem agredidos. Técnico adora também passar a mão na cabeça de jogador violento.

Se Obina e Maurício tivessem agredido os adversários, e o Palmeiras tivesse vencido, provavelmente os dois não seriam punidos pelo clube. Talvez, recebessem até elogios por suas bravuras.

No mundo ideal, a imprensa cobraria, com ênfase, mais qualidade técnica e menos violência. No real, parte da mídia incorporou o discurso dos técnicos de que o importante é o resultado e que, no futebol moderno e de muita marcação, não há mais lugar para futebol bonito e com poucas faltas.

No meu mundo ideal, queria assistir aos jogos somente com o olhar de um poeta e de um apreciador das coisas belas de um espetáculo. No meu mundo real, preciso ser também pragmático e um analista técnico e tático. Tento unir os dois mundos. Nem sempre consigo. Os dois se estranham.


(coluna retirada da página de Esportes da Folha De S.P do dia 22/11/09)

Tostão é um ex-jogador de futebol brasileiro, médico e colunista da folha da página de Esportes.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cambalache - Mario Benedetti, Conto

Aquele time de futebol, rio-platense (não darei mais detalhes, pois o que interessa aqui é a anedota, não o nome dos atores), chegou à Europa apenas 24 horas antes da sua primeira partida contra uma das mais prestigiosas equipes do Velho Continente (aqui também não darei maiores detalhes). Mal tiveram tempo para um breve treino, num estádio mais ou menos secundário, com um gramado desastroso.

Quando por fim entraram no verdadeiro campo (ou field, como preferem alguns puristas), ficaram estupefatos com as colossais dimensões do estádio, com as arquibancadas lotadas e vociferantes, e também com a atmosfera gélida de um janeiro implacável.

Como de praxe, as duas equipes se alinharam para ouvir e cantar os hinos. Primeiro, logicamente, o dos locais, entoado pelo público e pelos jogadores, seguido de uma intensa ovação.

Depois foi a vez do nosso. A gravação era horrível, com uma desafinação realmente olímpica. Nem todos os jogadores sabiam a letra inteira, mas acompanharam pelo menos a estrofe mais conhecida. Um dos atletas, casualmente um atacante, embora se lembrasse do hino, resolveu cantar no lugar dele o tango "Cambalache": "Que el mundo fue y será una porquería, ya no lo sé, en el quinientos seis, y en dos mil también." Só na tribuna de honra, alguns poucos aplaudiram por obrigação.

Finda essa parte da cerimônia e antes do ponta-pé inicial, que escreve a cargo de um encarquilhado ator do cinema mudo, os jogadores rio-platenses rodearam o atacante rebelde e o repreenderam duranmente por cantar um tango em vez do hino. Entre outros amáveis epítetos, els o chamaram de traídor, apátrida, sabotador e cretino.

O incidente teve inesperadas repercussões no jogo. No início, os demais jogadores evitaram passar a bola para o sabotador, de maneira que este, para tomá-la, era obrigado a recuar quase até a linha defensiva e depois avançar muito, esquivando-se dos robustos adversários e passando-a em seguida (porque não era egoísta) a quem estivesse melhor colocado para chutar a gol.

Os europeus jogaram melhor, mas faltavam poucos minutos para o apito final e nenhum dos dois times conseguira vazar a meta adversária. E assim foi até os 43 minutos do segundo tempo. Foi então que o apátrida tomou a bola num rebote e empreendeu sua desafiante disparada rumo ao gol adversário. Penetrou na grande área e, já que até então seus companheiros haviam desperdiçado as boas chances que lhes dera, driblou dois zagueiros com três gingadas geniais e, quando o goleiro saiu espavorido tentando cobrir o ângulo, o cretino ameaçou chutar com a direita mas chutou com a esquerda, a bola num inalcançável canto da trave. Foi o gol da vitória.

A segunda partida aconteceu em outra cidade (não entro em detalhes), num estádio igualmente imponente e com as arquibancadas lotadas. Lá também chegou a hora dos hinos. Primeiro o do time da casa e depois o dos visitantes. Embora a trilha sonora seguisse por outro lado, os 18 jogadores, perfeitamnete alinhados e com a mão direita sobre o peito, cantaram o tango "Cambalache", cuja letra, esta sim, todos sabiam de cor.

Apesar da vitória também nessa partida (não me lembro do resultado exato), os indignados dirigentes resolveram cancelar a excursão européia e multar todos os jogadores, sem exceção, acusando-os de traidores, apátridas, sabotadores e cretinos.


(Conto retirado do livro "Correios do Tempo", Mario Benedetti, Editora Objetiva)


Nota: Mario Benedetti (Paso de los Toros, 14 de setembro de 1920 — Montevidéu, 17 de maio de 2009) foi um poeta, escritor e ensaísta uruguaio.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Amar - Drummond

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Manhã sem vestígio - Carlos Heitor Cony, Crônica

FAZ TEMPO: tinha as manhãs livres, alma e corpo também livres. Conhecia um atalho que subia para o morro onde havia paisagem e solidão. Uma antiga estrada de saibro, toda arrebentada, parecia-me impossível para carro. Ia a pé, então saboreando os pasos e o sol que descia sobre meus ombros e me abençoava.

Fui lá diversas vezes. Geralmente, ia de mãos abanando, apenas pelo prazer de andar, ter o sol e a manhã. Raramente levava um livro. De qualquer forma sempre sabia que ia para um lugar onde podia ficar sozinhi e tranquilo, pensar em coisas que aqui embaixo já ia perdendo o hábito de pensar.

Encostava a cabeça num pé de quaresmeira, que, em determinadas épocas do ano, em fevereiro, sobretudo, ficava roxo. Deixava o maço de cigarros ao lado e consumia minha manhã e minha liberdade procurando ressuscitar um trecho de minha vida, uma etapa de minha caminhada. Na realidade, nada ia procurar, deixando que a liberdade e a manhã me levassem a um roteiro que escolhia na hora, sem saber onde iria dar, nem mesmo se me daria em algum lugar.

Destacava um ano: 1943, por exemplo.

E começava por janeiro: Itaipava, passeios a cavalo, padre Castro Pinto lendo os telegramas que falavam da guerra, o tombo do Macário, a noite em que fiquei preso na despensa - a chave quebrara na fechadura e tive de dormir em cima dos sacos de farinha, só no dia seguinte vieram me buscar.

- Isso não foi em 1943. Foi em 42. Talvez em 44. Talvez no ano passado em Marienbad.

Pois, em manhã assim, ouvi de repente um ruído: o carro subia, gemendo, a velha estrada. Logo vi, coberto pelas moitas do capim mais alto, a capota do carro fazendo a curva e, logo depois, os gordos pneus, maltratados pelas pedras e pelo calor que o carro me trouxe subitamente quando estacou a minha frente.

- Desculpe, não viemos incomodar ninguém.

A frase era ociosa, mas o homem que saiu do volante julgou-se obrigado a dizer qualquer coisa. Eu poderia dizer coisa parecida, "também não quero incomodar ninguém", mas preferi ficar quieto e aguardar os acontecimentos, que logo começaram a acontecer.

O homem do volante deu a volta por trás do carro e abriu a outra porta. Do ângulo que estava, deitado quase no chão, não via quem vinha ali. E vi o primeiro uma perna gordinha e queimada de praia. Depois, um joelho adolescente, e logo uma saia azul-marinho.

Não olhei mais nada. Vi depois o vulto da colegial sumindo pelo início da mata, os cabelos louros batendo nos ombros, a blusinha justa falando de uma seiva que eu sentia sem precisar olhar para a sua juventude.

Sei lá quanto tempo demoraram. Pensei no ano de 1943, pulei para o de 1952, recitei mentalmente todos os poemas de Verlaine que sabia de cor, bole a história para um conto encomendado por uma editora e já estava disposto a vir embora quando o casal ressurgiu das matas.

Olhei bem a cara do homem. Era mais velho que eu, tinha uns 40 anos, ou mais. Aliança no dedo e anel de advogado ou de contador. Não olhei a cara da moça nem a blusa, para não ver as iniciais do colégio.

Novamente a saia azul-marinho, o joelho adolescente, a perna gordinha, o barulho da porta fechando, o ronco do motor, a capota sumindo pelas moitas de capim.

Estava só, novamente. Nada parecia ter acontecido ali. À minha frente, nada indicava ter um carro parado ali, o homem com anel no dedo, o joelho adolescente e forte, a saia azul-marinho de um colégio ignorado. Nem mesmo a marca dos pneus ficara no saibro castigado pelo peso do automóvel. Nenhum vestígio na manhã de sol.

Então vim embora, sentindo na garganta uma coisa amarga que me faz ainda ter vergonha de mim mesmo e, ao mesmo tempo, sentir uma impotente inveja das coisas que podem acontecer com os outros, tornando-me cúmplice e vítima de um mundo que eu não condeno, apesar de não amá-lo.


(texto extraído da página Ilustrada da Folha de S.P de hoje, 2/10/09)

sábado, 29 de agosto de 2009

trecho de "O Destino de um Homem" - W. Somerset Maugham

"Não prestei muita atenção, e como ela parecia se prolongar, aproveitei para refletir sobre a vida do escritor. É uma vida cheia de contratempos. Para começar, ele deve sofrer a pobreza e a indiferença do mundo, depois, tendo conquistado uma parcela de sucesso, tem de se submeter sem protesto aos seus riscos. Depende de um público inconstante. Está a mercê de jornalistas que querem entrevistá-lo; de fotógrafos que querem tirar-lhe o retrato; de diretores de revistas que o atormentam por causa do imposto sobre a renda; de pessoas gradas que o convidam para almoçar; de secretários de instituíções que o convidam para fazer conferências; de mulheres que o querem para marido e de mulheres que querem divorciar-se dele; de jovens que lhe pedem autógrafo; de atores que desejam papéis e estranhos que querem um empréstimo; de senhoras sentimentais que lhe solicitam a opinião sobre assuntos matrimoniais; de rapazes graves que querem opinião sobre suas composições; de agentes, editores, empresários, chatos, admiradores, críticos, e da própria consciência. Mas existe uma compensação. Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma reflexão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, enfim, qualquer emoção ou qualquer idéia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco, usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de todo. Ele é o único homem livre."



W. Somerset Maugham
(Paris, 25 de janeiro de 1874 — Saint-Jean-Cap-Ferrat, 16 de dezembro de 1965)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Os Amantes, Júlio Cortázar

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos:
algo fala entre seus dedos,
línguas doces lambem a úmida palma,
correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.
São os amantes,
sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva,
rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.
Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam
e se tocam uma vez mais
antes de haurir o dia.
Já estão vestidos,
já se vão pela rua.
E só então, quando estão mortos,
quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.

















(versão original:)

Los Amantes

¿Quién los ve andar por la ciudad
si están todos ciegos?
Ellos se toman de la mano: algo habla
entre sus dedos,
lenguas dulces
lamen la húmeda palma, corren por las falanges,
y arriba está la noche llena de ojos.

Son los amantes, su isla flota a la deriva
hacia muertes de césped, hacia puertos
que se abren entre sábanas.
Todo se desordena a través de ellos,
toda encuentra su cifra escamoteada;
pero ellos ni siquiera saben
que mientras ruedan en su amarga arena
hay una pausa en la obra de la nada,
el tigre es un jardín que juega.

Amanece en los carros de basura,
empiezan a salir los ciegos,
el ministerio abre sus puertas.
Los amantes rendidos se miran y se tocan
una vez más antes de oler el día.

Ya están vestidos, ya se van por la calle.
Y es sólo entonces
cuando están muertos, cuando están vestidos,
que la ciudad los recupera hipócrita
y les impone los deberes cotidianos.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Ser Brotinho (Paulo Mendes Campos)

Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.

Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.

É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível e tão inteligente e natural. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.

Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.

É telefonar muito, estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.

Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.

É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.

Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada fala.

Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.


Texto extraído do livro “O Cego de Ipanema”, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960, pág. 15.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Fantasma - Francisco Slade, Romance


Fantasma conta a história de um escritor anti-social e melancólico, João, e o personagem da peça que este primeiro está escrevendo, Arto. As duas histórias se misturam e se intercalam ao longo do livro quando uma companhia de teatro resolve encenar a peça. Em um dos capítulos deste livro, além de mil outras coisas, tem a descrição de uma trepada tão (....forte, impactante, marcante, engulho, tesão...?) sem palavra que estou que só por isso já me valeu a pena ter lido. O livro em si, demora um pouco pra pegar, começa lento e é preciso fazer um esforço para continuar, mas em certa parte do meio engrena numa velocidade onde não é possível parar mais. Além de ter me deixado com verdadeira repugna, constrangimento, em alguns momentos.

"Até que ponto se pode esquecer de si mesmo... E lembrar é como alguém que volta, um desconfortável encontro na rua com alguém que não se vê há muito tempo; a intersecção de dois espectros. Encontrar-se assim repentinamente consigo mesmo, com aquele que se julgava morto."(...) "Tenho medo, medo de ficar triste como eu realmente sou na frente de alguém. Preciso parar a minha vontade de chorar - afinal, que homem pode chorar o tempo todo, cada segundo?"(...) (Fantasma, página 146)

Fantasma
Francisco Slade
Editora 7letras
192 páginas


Francisco Slade (Rio de Janeiro, 1978) é um escritor brasileiro, formado em cinema. Já publicou Domingo (2004) e Fantasma (2008), ambos pela 7Letras.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Um pedaço de canção perdida - Cecília Meireles













Tudo ficou para longe. E perdido. Diferente. Irreconhecível. Que aconteceu? Ninguém sabe. No entanto, os olhos mais familiarizados com eles não poderiam de novo encontrar os velhos acontecimentos.

Por isso, começaram a contá-los outra vez, um por um. Certamente devia existir um lugar para a emoção. Mas a emoção também não vinha mais. Estava paralisada no fundp da alma, contemplando, insensível. E a narrativa carregada de desgraças passava como um cântico trágico numa língua que não o entende. Certamente, convinha chorar. Mas em que ponto? Todas as coisas estavam assim desequilibradas.

Conviria também falar, protestar, rugir. Porque era nosso amor que se estava partindo aos pedaçoes, compreendes? Era a nossa vida que estava sendo quebrada, percebes? E diziam-nos, diziam-nos, diziam-nos. E não era assim. Não tinha sido. Não fora de nenhum modo. Mas tudo estava tão longe que não tínhamos força para um grito. Coragem para uma atitude. Ânimo para uma resposta.

A vida é tão curta que não dá tempo para voltar atrás. Vamos construir outras coisas com esperanças novas. Vamos criar um outro mundo isente ainda de decepções. Nele não crescerão nunca mais alegrias da antiga estirpe. Tudo será diverso. Mas de algum modo será. Só essa coisa é indispensável: ser.

Tudo ficou para longe. E perdido.

Que é que eu tenho contigo, o tempo?

Continuemos.

Ouvi dizer, e recordei, que estivemos sobre as montanhas mais altas, e achamos ainda maiores as dimensões que tínhamos. Que estivemos dias inteiros diante do mar sentindo-o menor que nós, e menos profundo. Que comparamos, com a nossa grandeza, a grandeza de todas as coisas e sempre as deixamos diminuídas. Foi, na verdade, assim.

Também sei que enfrentamos as tempestades sem a mais leve impressão de perigo. Estávamos além de tudo.

Depois, fechei os olhos, como os deuses que se embebem no repouso da própria divindade.

Parece que as coisas em redor mudaram. Não é preciso ter certeza disso.

Não me interessa mais saber que forças têm as tempestades. Que altura têm as montanhas. De que tamanho é o mar. Não tenho nada mais para medir por eles. Estou mais infinita.

Tudo tem seus crepúsculos, seus contrastes, suas mudanças. Tudo que assiste ou reflete a forma variável do mundo. Tudo tem vida e morte, desejo e renúncia. Menos eu.

Ouvi dizer, e recordei, que fomos outros, noutros lugares.

Que é que eu tenho contigo, ó paisagem?

Continuemos.

E as tuas palavras ficaram como o alto mar a alta noite. Indistintas. Alimentadas do silêncio do meu pensamento, que absorveram com inquietude.

Alto mar. Alta noite. Dois desertos sobrepostos. E a minha memória hesitando entre todos dois.

"Posso atirar meu coração nas ondas, como uma rosa.
Posso jogar meu coração para a noite, como uma estrela"

Ai! Pequeno poema impossível. Duas máscaras luminosas sobre uma triste coisa, porque é uma coisa triste e frágil, o meu coração. Natureza de cinza, de areia, de folha seca. Tudo o que se desfaz com um toque brusco. Existência sem existência fora da pura abstração.

Não obstante, às vezes parece-me tão permanente, tão sem morte, tão capaz de resistir, tão certo de vencer, que o sinto enraizado nesse chão de eternidade de onde se sente que brotaram os mundos.

Ora, que importa que seja efêmero ou perpétuo?

O mar está cheio de rosas, e a noite coberta de estrelas. Nem por isso deixam eles de ser uma incerteza sob um mistério. Nem as rosas fixam as águas, nem as estrelas apagam a noite. É assim, para sempre. E é inútil, dentro desses limites igualmente sombrios, insinuar a mais pura, a mais leve, a mais tênue tentativa de liberdade.

E as tus palavras ficaram, assim, diante de mim, estendidas. Olho-as sem nenhuma intenção.

Que é que eu tenho contigo, ó criatura?

Continuemos.

Bem. Hoje, então, escreveremos aqui o nosso nome, rapidamente, e continuaremos.

O nosso nome? Não. Não vale a pena escrever uma coisa tão instantânea. Poderia suceder olharmos para trás, amanhã, e perguntarmos, como no princípio: "Que inscrição deixaram ali?" E diriam: "Mas és tu mesma, não vês? É o sinal da tua passagem!" E nós ficaríamos tão tristes, olhando, como um louco escutando uma canção. Exatamente como no princípio, estás vendo?

E poderia também suceder de uma outra forma. Não é preciso dizer. Para que estar falando de coisas que não acontecerão?

Eu e tu são duas palavras sem sentido. Usam-se por acaso, como um traje vestido às pressas para a travessia de um perigo. Depois, despem-se, perdem-se, esquecem-se. Resta, acaso, alguma coisa?

Mas escuta: o luar está sobre mim, todo aberto como uma árvore branca. Esta noite cantarei, para me ouvires - com lágrimas novas, que nunca sentistes, os teus olhos se encherão longamente de amor.

Se alguém passar por nós pensará que estamos bem perto um do outro, mais perto que o pequeno caminho entre o meu lábio que canta e o teu coração que escuta. No entanto, nós dois sabemos que é mentira. Sbemos que estamos como os dois pólos da terra.

Foi somente um pouco de música no meio do caminho.

Amanhã não estarás diante de mim.

Continuemos.

(Que é que tenho comigo, ó Eu?)

domingo, 8 de março de 2009

Entrevista com Fabrício Carpinejar

Trechos de uma Entrevista dada a Revista Literatura, pelo escritor gaúcho Fabrício Carpinejar:

CP Literatura - Talvez, a única pergunta que importa, e uma das mais difíceis de responder seja: o que te faz escrever?
Fabrício - Realmente, é a pergunta mais atormentada. É uma urgência. O que me faz escrever é a incapacidade, a incompetência para fazer outra coisa. A literatura é um circo, essa possibilidade de completar as falhas, de ter uma honestidade e uma autocrítica muito mais contundente. Por que eu escrevo, então? Porque eu não consigo me enterrar o suficiente.

CP Literatura - E o inverso? O que te faz não escrever?
Fabrício - A sua vida quando está muito perfeita. A alegria é meio burra, por mais que eu tenha tentado alfabetizar a alegria, principalmente na poesia. Parece que você precisa ser trágico, fodido, ferrado, acabado, para escrever alguma coisa. Eu não escrevo na hora que a vida não precisa de meditação. O escritor precisa entender que, em alguns momentos, ele mais escreve quando não escreve. A literatura tem que ter um minuto de silêncio. Não adianta somente escrever para ocupar, você escreve para desocupar, para dar espaço. Também não pense que vai ser gênio, porque não conseguirá escrever nada que preste.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Morire

"Morire non é basta!" E o coronel, naquele tempo tenente, pensara: "Mas que raio ainda querem que façamos?"

Hemingway - Do Outro lado do Rio, Entre as Árvores

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Nietzschiana - Manuel Bandeira

- Meu pai, ah que me esmaga a sensação do nada!
- Já sei, minha filha... é atavismo.

E ela reluzia com as mil cintilações do Êxito intacto.